O quinto dia útil do mês tornou-se traumático a uma mulher que, no transcorrer de um ano e seis meses, era obrigada a apresentar uma declaração com carimbo da academia de ginástica atestando que ela emagreceu como condição de recebimento de parte do salário. Ex-funcionária de uma loja de itens de todos os gêneros – de bijuterias a maquiagem – em Muriaé, na região da Zona da Mata, ela era coagida a emagrecer e, se não perdesse quilos de um mês para o outro, não ganharia o restante do salário pago – e que, aliás, não era declarado pelo proprietário. Agora, seis meses após ser demitida, ela receberá uma indenização de R$ 50 mil por assédio moral, segundo decidiu o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 1ª Região. Uma segunda funcionária do comércio, acionada como testemunha da loja, revelou à Justiça que o patrão realmente se aborrecia com o peso da colega de trabalho.
Anotações e recados grosseiros eram parte do repertório do proprietário que, às vésperas de entregar o salário à funcionária – R$ 975 na carteira e um acréscimo de R$ 200 como bônus por emagrecimento –, obrigava a mulher a se pesar em um academia de ginástica e levar até ele o atestado de emagrecimento com carimbo da unidade. Episódios de humilhação repetiram-se por aproximadamente um ano e seis meses, período em que ela permaneceu como contratada na loja.
Amedrontada pela possibilidade de ser perseguida pelo ex-patrão, a mulher optou por não revelar a própria identidade, mas permitiu que a advogada Grazielle Berizonzi falasse à reportagem por ela. Além de imagens feitas a partir de envelopes com orientações de emagrecimento deixadas pelo proprietário da loja, elas levaram à Justiça áudios nos quais o patrão alega que ela teria que emagrecer para receber o bônus – em um deles, após declarar a ele que não conseguiu emagrecer por reter líquidos em decorrência do período menstrual, a mulher ouviu o ex-chefe responder a ela que era apenas “desculpa de peidorreiro”.
Funcionária não queria entrar na Justiça
Quatro dias após ela ser demitida em meio à pandemia de coronavírus, o ex-patrão ligou para a mulher e pediu que retornasse ao cargo de vendedora da loja. Entretanto, após um ano e meio de humilhações, ela optou por procurar a advogada Grazielle Berizonzi para saber se seria obrigada a trabalhar outra vez no comércio. À época, a mulher sequer sabia que a obrigação de emagrecer imposta pelo ex-chefe era assédio, como esclarece a advogada.
“Ela não entendia que era assédio moral: ‘Ah, sou funcionária e, infelizmente, tenho que aceitar algumas coisas’. Quando ela apareceu para conversar comigo, disse que quatro dias depois de mandá-la embora o patrão pediu que ela retornasse, porque ele tinha feito um empréstimo com o governo e não poderia reduzir o quadro de funcionários. Ela me relatou que se mudou para outra cidade com o namorado e queria começar uma vida nova, não queria retornar. Ela disse: ‘Ah, eu não gosto de trabalhar lá, porque ele faz uma coisas comigo, que eu não aceito mais”. Após muita insistência, a funcionária detalhou que o patrão queria que ela emagrecesse e decidiram que entrariam contra ele no TRT por assédio moral – e gordofobia. “Eu tive que convencê-la até ela se sentir confortável”, detalha.
À primeira audiência, o proprietário da loja pediu que a outra funcionária testemunhasse a seu favor no Tribunal Regional do Trabalho. Entretanto, o depoimento dela – a única que restou na loja quando a mulher foi demitida – acabou comprometendo-o mais. “Ela (a testemunha) nos ajudou e não tinha como ser diferente, pois a testemunha é obrigada a falar a verdade. Ela disse que nunca viu o patrão cobrar o peso da minha cliente ou o emagrecimento, mas disse que sabia que ele tinha um incômodo com o peso dela porque a loja era grande e ela tinha que andar por ela”, disse a advogada.
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Foi apontado nos autos que as duas funcionárias recebiam, igualmente como definido na carteira, a quantia de R$ 975. Porêm, o bônus de R$ 200 era pago apenas à atendente cujo peso incomodava o patrão. “O recebimento dessa quantia apenas caracterizou ainda mais o assédio. Ela recebia porque estava acima do peso, e recebia para emagrecer. Ele (o proprietário da loja) disse que aquele valor era uma forma de demonstrar preocupação com a saúde dela, que era para ajudar com academia e alimentação mais saudável”.
Em alguns dos bilhetes no envelope onde era colocado o salário, o patrão chegou a escrever: “Favor conferir o peso, caso não tenha perdido peso do mês de julho até agosto, favor devolver os R$ 200”. No outro, o proprietário da loja ate a ameaça: “quero ver o resultado no final do próximo mês, tá? ‘Estou de olho’, este mês não vi diferença”. Em uma das anotações deixadas, o patrão obriga que ela apresente um certificado da academia comprovando que ela se pesou no dia combinado – ele escreve: “Favor apresentar a pesagem do dia 5/6/2019 com carimbo da academia, certificando que foi peso realizado no dia. Obrigado!”.
Além das mensagens, a advogada conseguiu ter acesso a uma gravação de áudio na qual o homem ofende a cliente dela e alega que ela apresentava “desculpas de peidorreiro” para não emagrecer. “Ela disse que nunca tinha mostrado para ninguém os áudios porque morria de vergonha. Ela falou também que não tinha noção do assédio. Em uma das gravações, ela diz para o patrão que não emagreceu porque estava retendo líquidos, ela explica que tem relação com a menstruação, mas ele só responde que é ‘desculpa de peidorreiro. Em outro, que está transcrito na sentença, ele fala para ela: ‘você tem que entender, parar de dar desculpas, você tem que sentir que esse dinheiro que você está recebendo é para emagrecer, você tem que emagrecer para receber’”.
Em audiência, o proprietário da loja alegou que preocupava-se com a saúde da funcionária, e em relação aos áudios alegou que ela os teria manipulado contra ele. A defesa pontuou que irá recorrer da sentença que determina o pagamento de R$ 50 mil à mulher por assédio moral. Apesar da atendente ter optado em não falar sobre o trauma sofrido, a advogada esclareceu em mensagem encaminhada à reportagem que é necessário que vítimas de assédio moral denunciem as violências sofridas e procurem a Justiça. “É preciso que as pessoas não vejam essa situação como algo aceitável. E, parafraseando Maria Ester de Freitas, Roberto Heloani e Margarida Barreto ‘aceitar a violência como algo normal é torná-la ainda mais violenta. A violência mina a esperança no futuro, desintegra o vinculo social, fortalece o individualismo predador, corrói a cooperação e a confiança, derrota a solidariedade e retira do homem a sua humanidade”, reforçou.
Fonte : Jornal O Tempo